Défices.r

O problema (crise) das dívidas soberanas é, simplesmente, o início de um processo de inflexão e ajuste a que as economias desenvolvidas estarão - incontornavelmente - sujeitas nos próximos decénios.

Estas economias atingiram níveis de riqueza substanciais - por comparação com o resto do Mundo - e procuram, a todo o custo, manter essa situação. Caso toda a população mundial vivesse (e gastasse) ao nível da dos países desenvolvidos, seriam necessários os recursos disponibilizados, de forma sustentável, por mais três planetas Terra.

Com o aumento da população, com o advento da globalização e com as alterações substanciais no mercado da energia e no acesso aos combustíveis fósseis, todos os pressupostos anteriores alteraram-se.

Assim, e devido a estes factos, a sociedade baseada no crescimento económico contínuo a que estávamos habituados vai mudar (o mais suavemente que for possível) para uma Nova Sociedade capaz de acomodar um período de recessão contínua que passará a ser normal.

Uma boa governação pública, que siga boas políticas, nestes países, deixará de ser aquela que assegura o crescimento contínuo (situação que será impossível) passando a ser aquela que conseguirá evitar roturas sociais, garantindo uma “aterragem suave” da sociedade que, nos países desenvolvidos, tem vivido, nos últimos anos, na estratosfera…

Esta aterragem, no entanto, poderá ser seguida, em muitos países, por um percurso difícil, de adaptação ao facto de ter disponíveis muito menos recursos e riqueza distribuível, o que se assemelhará a um percurso de descida em túnel. No fundo do qual, se tudo correr bem, poderemos chegar então a uma Nova Sociedade, equilibrada e com potencial (aí sim) para uma existência sustentável, quem sabe, até, para algum crescimento.

Infelizmente, muitos destes países ainda ignoram (ou aceitam, reagindo devidamente a essa situação) completamente o facto dos equilíbrios globais já não os beneficiarem, por motivos bem evidentes. Nomeadamente, o facto do trabalho sido deslocalizado – fisicamente - para os países em desenvolvimento, onde os custos com a mão-de-obra são inferiores. E, com o trabalho, também foi a riqueza que dele deriva. Não forçosamente para esses países, mas para a “nuvem”, zona virtual, extra-nacional, onde as multinacionais se “instalaram”, longe das leis e dos controlos soberanos.

Nestes países, a riqueza saiu mas os níveis de vida mantiveram-se. Por esta razão, os défices passaram a ser recorrentes e a dívida cresceu… A soberana (pública) e todas as outras (empresas e particulares).

Como todos conseguem entender, com – cada vez - menos riqueza produzida e cada vez mais dívida, o fardo (da dívida) começou a ser cada vez mais pesado.

Até que se tornou insustentável.

Quando isso acontece, usualmente, os Países em questão estão já estruturalmente desequilibrados. Com despesas fixas elevadas (Estado Social) e com o trabalho e a riqueza de saída.

O problema é que, entre a “realização” da situação (no final das ilusões socialistas de terceira via) e o fim do acesso a financiamentos, nos mercados internacionais, não há saídas (ou formas de saída) estabelecidas. A crise das dívidas soberanas, que começaram aqui ou ali, na América do Sul, expande-se para a Europa e ameaça os EUA.

E, se o problema é com as dívidas, a sua origem passa pelos défices. Pois são estes que “alimentam” e criam a dívida.

A dívida soberana (pública), por si, até pode ser virtuosa. Desde que a sua criação tenha resultado de um bom investimento ou de uma necessidade (uma catástrofe). Desde que esteja limitada a uma percentagem – razoável - da riqueza anualmente produzida. Desde que, logo depois, se inicie um período de amortização. Mas, fundamentalmente, que não resulte de défices estruturais e fixos, nomeadamente, de benefícios e serviços (sociais ou não)  insustentáveis.

Quando a estes problemas se juntam outros, onde se incluem “salvamentos” de instituições sistémicas (privadas e não só) grandes demais para falirem (empresas de crédito e análogas), com recurso a financiamentos públicos (pagos pelos contribuintes), tudo de precipita.

Nos países desenvolvidos:

A riqueza produzida começou – naturalmente -  por via da globalização, a decair.
E aí, criou-se uma ilusão.
A de que o crescimento e os níveis de vida seriam sempre crescentes.
As democracias continuaram a eleger governos cuja retórica assegurasse esse objectivo.
O que se revelou irrealista… na esmagadora maioria das situações.

Actualmente, há centenas de milhões de trabalhadores chineses, cujo nível de vida e rendimento é apenas uma ínfima parte da que usufruímos nos países desenvolvidos. O processo de melhoria das condições de vida de toda essa multidão (para um nível que, mesmo assim, continuará a ser bem inferior ao nosso) está a decorrer inexoravelmente e isso impõe uma transferência de riqueza.

O nosso Planeta é finito, os recursos escasseiam e a globalização assegura que o trabalho, os recursos necessários e a riqueza consequente circulam livremente, procurando as melhores localizações, em cada momento, em função da relação custos/produtividade.

E não tenhamos dúvidas: todos acabarão por se encontrar num determinado nível. Que se situará algures bem acima de onde estão hoje as populações médias nos países em desenvolvimento e bem abaixo de onde estão as populações médias dos países desenvolvidos.

Restará apenas saber de que forma cairemos…
De supetão? Ou de forma calculada, calculada e socialmente consciente?

No período recente de ilusão socialista – em que se criou um Estado Social inflexível e de benefícios sempre crescentes, mantivemos gestões em défice, para o sustentar. Nessa ilusão, Estados, empresas e populações inteiras passaram a gastar mais do que conseguiam produzir. E sustentaram a ilusão, pedindo emprestado.

Assim, chegamos ao ponto actual.
A crise da das dívidas soberanas.
Gestões em défice estrutural (com despesas inflexíveis “defendidas” pelas Constituições nacionais) e dívidas soberanas em crescendo e com dimensão bem para além do razoável.
A solução ainda não existe.

Uns procuram solidariedades a partir dos países - amigos - mais ricos. Remedeio que apenas adiará as verdadeiras soluções, e apenas terá validade enquanto os países atrapalhados são pequenos o suficiente para serem salvos…

Outros lutam para aumentar a capacidade legal de endividamento.

São tudo soluções de “encaixe” de mais défice à conta de mais dívida. Apenas se “empurra” o problema para mais tarde. Problema que, entretanto, crescerá e se tornará de mais difícil resolução.

É claramente necessária uma solução. Um desmame. Uma “aterragem” forçada de uma economia em fase de ilusão, mas de forma controlada, evitando quedas abruptas, em rotura, que arrastarão e arrasarão tudo e todos. Mesmo os que hoje ainda se acham seguros...

Os mecanismos actuais não enquadram essa fase de desmame. E deveriam. Pois Grécia, Irlanda e Portugal são meras etapas iniciais. O processo cresce e segue, passando pela Itália, Espanha, arrastando toda a Europa e, não demora nada, chegaremos à mãe de todas as dívidas soberanas: a dívida dos EUA…

Todos sabemos que, o custo de um bem sobe quando a procura excede a oferta.
E que, nesse caso, a escassez pode ser uma realidade.
Avaliemos a situação criada quando esse bem é o... dinheiro.

Como vimos, os países desenvolvidos vivem para lá das suas possibilidades. Dessa forma, criam défices e, para os financiar pedem emprestado. As dívidas acumulam-se, de défice em défice e é preciso mais... dinheiro.

A primeira questão é saber se a soma dos défices (soberanos, empresariais e particulares) é equilibrado com os excedentes criados e disponíveis. Ora, a resposta é não.

O problema dos EUA tornou claro esse facto. De um momento para outro, os EUA colocaram no mercado, necessidades acrescidas de 2,1 milhões de milhões de dólares (num ano) a que se soma todo o refinanciamento da dívida anterior.

Como a emissão (impressão) de nova moeda é uma faca de dois gumes (acaba sempre por se pagar no futuro), os EUA estão, claramente (e mais uma vez) na charneira do futuro do Planeta. Necessitam de (muito) dinheiro externo para o financiamento público. Os mercados reagem ao facto e sobem - naturalmente - os custos do bem que comercializam: o dinheiro.

Com isto, as dívidas soberanas (onde existem) tornam-se mais "pesadas" e, algumas até, onde a gestão pública foi irresponsável, tornam-se insustentáveis...

As soluções aplicadas à Grécia, Irlanda e Portugal foram casos isolados tratados isoladamente. Não configuram uma solução estruturada, pré-definida. Mas apenas um remedeio, válido (?) apenas enquanto as economias enquadradas forem suficientemente “pequenas para serem salvas”. De uma forma paternalista, com uma base solidária (e hipócrita) de alguns grandes países, mais ricos que, como se diz atrás, se acham seguros. Ora, não estão…

Os mercados deverão, para se salvaguardar a si próprios, implementar sistemas de desmame de um problema para o qual também contribuíram. Afinal eles emprestaram. Pelo que devem adoptar parte do risco assumido. E aceitar que só se salvarão (também eles) se o processo – futuro - de emprestar e pedir emprestado se mantiver – sempre – a níveis controlados. O que não aconteceu nos anos mais recentes.

Até lá, é necessário ajustar. Controladamente.

1º As empresas de notação deverão passar a ter como clientes quem empresta e não quem pede emprestado… e passar a assumir um risco, mesmo que longínquo, sobre a avaliação que farão para os seus clientes. Não tem sentido que classifiquem um potencial devedor com rating AAA e, no final do período de maturidade, o credor possa enfrentar um default da dívida em questão. Pelo que, por opção, quem empresta, passará a ter o direito usufruir de um seguro associado à notação efectuada, dentro do contrato de empréstimo que efectua, agora, a três…

2º Os credores deverão entender que ao emprestar assumem um risco. E que esse risco existe mesmo e que pode ter consequências.

3º É nesse pressuposto que, no caso das dívidas soberanas, o devedor passa a ter acesso a um processo (legal) de ajuste (desmame) assim que a notação sobre a sua dívida passe a níveis acima, mas próximos de “lixo”. Uma moratória sobre a dívida. Processo este que pode ser decidido de forma unilateral, mas agora, de forma bem definida e conhecida de todos e, principalmente, de quem empresta. Tudo isto, antes de se dar a dívida como lixo e de haver incumprimento (com ou sem hair cut) descontrolado.

4º Assim, através desse procedimento, ao devedor, seria dado um prazo de ajuste.

5º E ao credor, abre-se uma nova possibilidade de recuperar o seu dinheiro (agora notado, quase ou, como lixo), mesmo que sob novas condições.

6º Assim, em primeiro lugar, a dívida soberana em questão seria dada como insolvente. Abrindo-se o processo de moratória sobre a mesma. Não adianta procurar solidariedades e apoios externos pois, logo se chegará a situações de tal dimensão em que terá de ser cada um por si.

7º O País que se encontre nesta situação poderá, então, activar unilateralmente um estado de INSOLVÊNCIA CONTROLADA (moratória sobre a dívida soberana) em que os credores teriam que se associar. Digamos que é uma das consequências do risco assumido ao emprestar…

8º Nesta nova situação, o País daria a si próprio, um período para se ajustar. Em cada vencimento de uma tranche de dívida, a mesma seria trocada por novos títulos, a 30 anos e a uma taxa de juro igual à dos empréstimos do Banco Central. Todos os anos, para além dos juros, amortizaria 1% do capital. E assumiria este plano de pagamento religiosamente.

9ª Entretanto, toda a "ajuda internacional" seria carrilada para os credores. Na defesa daqueles que possam não ter estrutura para aguentar a solução ou que tenham problemas sistémicos para a economia. Mas aqui, em relação à situação actual, no terreno, estes fundos passam a proteger os credores e não o devedor.

10º Iniciar-se-ia o tal período de desmame. Durante o qual, o país em questão teria que se ajustar… à força, pois a alternativa não seria nada agradável.

11º Reconhecer a evidencia do empobrecimento. De um ajuste em baixa. E de que, antes de voltar a crescer, vai haver uma queda grande da economia.

12º modelo fiscal desses países terá de ser totalmente alterado (e simplificado). Acabam-se com todos os impostos atuais, com exceção do imposto sobre o consumo. Que terá as taxas necessárias (elevadas o suficiente para compensar todos os outros impostos). A máquina fiscal, liberta da situação anterior, de gestão complexa é reorientada para a fiscalização e para a garantia de cobrança fiscal sobre o imposto único restante. Só este modelo manterá a receita fiscal equilibrada face (e proporcional) ao PIB, no cenário de queda da economia.

13º Todos os encargos sociais também se introduzem no imposto sobre o consumo. Eliminam-se todas as retenções e encargos sociais sobre as empresas. Desta forma os encargos sociais são suportados por todos (afinal todos usufruem dos benefícios) e não apenas pelos trabalhadores. Desta forma os produtos externos passam a ser taxados com fins sociais, da mesma forma que a produção nacional (antes isolada), eliminando-se, desta forma, uma das maiores desvantagens comerciais entre ambos.

14º Concretiza-se uma desvalorização salarial generalizada. Na Grécia e em Portugal já feita, pelo menos na função pública. Poderá ser associada a uma redução do tempo de trabalho, o que permitirá que as empresas se ajustem à realidade de novos níveis de procura - em baixa - que se crie mais emprego (cada um com menos trabalho) e que se evite o desemprego, a falência e a desarticulação social.

15º Com os custos laborais reduzidos (através das duas meditas atrás indicadas) poderá haver mais exportações e mais trabalho. E com menos rendimentos disponíveis haverá menos despesa e - espera-se - menos importações. Neste novo paradigma, os défices terão que ser eliminados pois não haverá quaisquer "mercados financeiros" nem "investidores internacionais" que aloquem qualquer recurso financeiro a estes países para o respectivo financiamento...

16º A liquidez cairá abruptamente (o dinheiro existente voa para outras paragens - aplicações rentáveis no exterior - e a poupança caí pela pressão da auteridade) pelo que terão de ser implementados processos de "encontro de contas" - sem dinheiro vivo interveniente - onde se incluirá o Estado, no processo de pagamento de serviços e cobrança de impostos. A fim da economia não parar.

17º O país mantém-se no Euro mas as compras ao exterior passam a ser feitas a pronto pagamento.

18º O suporte social passa a ser determinante neste ambiente de ajuste em baixa. Na garantia dos serviços sociais mínimos para ocorrer aos casos mais dramáticos. Evitando a desarticulação social e a rotura. Focalizando a disponibilização de alimentação, modelos que salvaguardem a habitação (que poderá “explodir” com incumprimentos de crédito) e na saúde, provavelmente através de novos modelos de intervenção baseado num seguro de saúde básico generalizado, a suportar pelo Estado.

É necessário clarificar que estes problemas só acontecerão aos países que decidiram viver acima das suas possibilidades. Que, para isso, pediram emprestado descontroladamente. Que se meteram, por sua opção, na “boca do lobo”.

Não tem sentido, agora, criar antagonismos sobre os mecanismos financeiros (mercados internacionais) que permitiram a criação destas dívidas soberanas, aos quais escolheram – eles mesmos – aderir.

E, quer se queira, quer não, com a entrada – esperada – dos EUA, neste processo, o problema precipita-se…

Se não se seguir esta solução (ou outra qualquer), então, não queiramos conhecer a alternativa…

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